Nesta finisterra contemplando o Poente. Estou na cidade da luz, da arquitectura dourada, glória que antecipa a morte. Sento-me no trono da grande serpente, minha mãe: mãe do alimento, do leito do rio, do leite, das águas, do amor, e mãe letal, enfurecida, colosso indomável, guardiã da justiça e do veneno. Vejo o porto de onde partem os barcos para o Além. Numa barca há dois corvos de vigia. Dizem-me: o sal das lágrimas de quem fica, de quem vive, é o que nos salva de apodrecer.
Arde a fogueira na rua. E no coração o fogo da vida. Arde, arde, arde, queimando a impureza, livrando-nos do mal. Livrai-nos do mal, Senhora. Livrai-nos do mal. Luz do solstício. Templo da magia. Soberana.
Na casa, tenho a água, a de Nábia, a de Oxum, a de São João Baptista. Água das fontes, da chuva e dos rios. Água que converte e abençoa e também é a fala dos peixes, resgatando as vozes dos ancestrais para revelar segredos. Água onde se formam as conchas de que fiz escudo e de onde colhi os búzios que sopram a memória do mar. Água dos espelhos a desvendar futuros. Hidromancia. Hidromancia. Mergulhar no mundo subaquático, lugar de recolhimento e revelação, para ascender, respirar. Superfície.
Nesta finisterra contemplando o Poente. As folhas das árvores estão verdes. Estirar a sombra no chão, seduzida pelo perfume das flores. Escutar a pulsação da Terra. Nascer. Renascer sob a luz do relâmpago e gritar pela primeira vez, com a fúria do trovão.
Já não arde a fogueira e a cinza voa com o vento. Abençoada a leveza que nos liberta da dor do mundo.