Intervenção de Fernando Dacosta na apresentação do livro “Ascensão da Água” (editora Labirinto), na Biblioteca Palácio Galveias, em Lisboa, dia 1 de Outubro de 2020
O livro de Samuel F. Pimenta, Ascensão da Água – que eu acrescentaria Ascensão de um poeta – contém alguns dos melhores versos surgidos ultimamente entre nós. Notável de subtileza, o autor avança pelos outros desocultando-se para melhor se ocultar, através de uma estética, uma ética, uma aquosidade incomuns.
Ele faz parte dos criadores que chegam elipticamente, elevando-se como aves de muitos voos, muitos sangues. Os poemas que nos abre são leitos que apetece reter, onde as palavras, as ideias, as emoções, as intenções se semeiam com cumplicidade irrecusável.
A paixão pelo íntimo excepcionaliza-o, abrindo perturbações como poucos entre nós, nós os que acompanhamos a sua barca de pluralidades, de afectuosidades. Dotado de capacidades de sugestão invulgares, que a inteligência, a vivência decantam, o autor afirma espaços próprios para si e para a sua obra, logrando uma escrita, uma partilha irrecusáveis.
“Já não sou rio nem margem/ Sou líquido com asas a crescer no horizonte”.
Samuel F. Pimenta é um ser que sabe encontrar caminhos, afirmar-se diferente, solidário, sensível; que tem na persistência, na disponibilidade, mapas sem recuo. Percorrendo-o, encontramos correntes singulares como: “Ver-te desta margem/ e saber que és o líquido vital/ a primeira veste das formas/ que o mundo concebeu./ Ver-te luz e caminho./ Morrer diante do teu reflexo”.
Para o autor, “cada poema é uma reza, um feitiço”, disse-o, acrescentando: “Com a poesia tracei o meu círculo mágico para poder viver. E fi-lo através do amor”.
Ninguém surge, sabe-se, do nada. Não podemos esquecer que a poesia – a que hoje não se reconhece o valor patrimonial e identitário que contém – é o grande pilar da literatura portuguesa, juntamente com a crónica. Fernando Pessoa lembra, a propósito, que o primeiro afloramento civilizacional que projectou internacionalmente o nosso País, foram poemas do Cancioneiro e crónicas de cavalaria, ou seja não foram feitos militares, comerciais, religiosos. O herói nacional português é um poeta, Camões.
Foi pela cultura que nos universalizámos, ao concebermos, depois da escrita, as navegações (não confundir com Descobrimentos). Sempre fomos bons a escrever e a navegar, formas de enfrentar o desconhecido – na brancura do papel, na atracção da água
Ao longo dos séculos e das gerações, a qualidade da nossa literatura, da nossa poesia mantém-se pujante – no século XX tivemos Fernando Pessoa e toda uma plêiade de notáveis autores, apesar da discriminação que nas últimas décadas caiu sobre a expressão escrita.
Samuel F. Pimenta faz parte dessa plêiade de criadores – que resistem, escrevem, publicam, denunciam. Daí intitular, simbolicamente, este seu livro de “Ascensão da Água”, surgido da observação do ciclo dela, água – fonte da vida.
Vale a pena sublinhar que livros anteriores seus – caso de “Ágora”, “Iluminações de uma mulher livre”, “Os números que venceram os nomes”, “O relógio”, “O escolhido” são referências na actual literatura portuguesa. Irónico e lúcido, e magoado, dirá que “enquanto se repete que a poesia não se vende e se não se vende não tem lugar nas editoras, apropriam-se ao mesmo tempo dessa poesia e dos seus poetas para nos venderem como grande património nacional”.
Samuel F. Pimenta encetou a sua afirmação por normas inamovíveis, ajudando-nos a passar do caos para o cosmos. E escreve: “Depois de descobrir/ que as lagartas tecem túmulos/ de onde nascem as borboletas/ com os meus ossos ergui uma casa/ e dentro dela me refiz. //Ainda que tenha visto o mundo ao contrário/ a seiva corre-me na vertical”.
A poesia corre-lhe igualmente na vertical.
Fernando Dacosta